Numa conversa entre entes do meio ambiental, foi levantado o assunto da menor agressão ao meio das Usinas Hidrelétricas à Fio D'agua. Há poucos meses eu havia lido este artigo. Resolvi compartilhar.
O que são usinas hidrelétricas “a fio d’água” e quais os custos inerentes à sua construção?
Usinas hidrelétricas “a fio
d’água” são aquelas que não dispõem de reservatório de água, ou o têm em
dimensões menores do que poderiam ter. Optar pela construção de uma usina “a
fio d’água” significa optar por não manter um estoque de água que poderia ser
acumulado em uma barragem. Esta foi uma opção adotada para a construção da
Usina de Belo Monte e parece ser uma tendência a ser adotada em projetos
futuros, em especial aqueles localizados na Amazônia, onde se concentra grande
potencial hidrelétrico nacional. Aliás, as usinas Santo Antonio e Jirau, já em
construção no rio Madeira, são exemplos dessa tendência.
Quais as consequências e custos
inerentes a essa opção? Quais serão os problemas futuros que a decisão de abrir
mão de reservatórios com efetiva capacidade de regularização de vazões poderá
criar?
Primeiramente, deve-se considerar
que a energia “gerada” por uma hidrelétrica resulta da transformação da “força”
do movimento da água. Transforma-se, assim, em energia elétrica, a energia
cinética decorrente da ação combinada da vazão de um rio e dos desníveis de
relevo que ele atravessa. Desse modo, não restam dúvidas de que, para o
processo, guardar água significa guardar energia.
Os sistemas de captação e adução
levam a água até a casa de força, estrutura na qual são instaladas as turbinas.
As turbinas são equipamentos cujo movimento giratório provocado pelo fluxo
d’água faz girar o rotor do gerador, fazendo com que o deslocamento do campo
magnético produza energia elétrica. O vertedouro, por sua vez, permite a saída
do excesso de água do reservatório, quando o nível ultrapassa determinados limites.
Outros aspectos e outros equipamentos são, também, importantes, mas, em
qualquer caso, estaremos diante de uma busca por queda e vazão – a primeira,
fixa, e a segunda, variável.
Nesse processo de transformação,
a geração de energia elétrica é limitada pelo produto entre vazão e altura de
queda, pois a energia obtida é diretamente proporcional ao resultado dessa
conta. A barragem interrompe o curso d’água e forma o reservatório, regulando a
vazão. Em uma usina com reservatório, essa variável pode ser controlada pelos
administradores da planta. Em uma usina a fio d’água, fica-se refém dos humores
da natureza, ainda que com menor dependência que as eólicas. Hidrelétricas com
reservatórios próprios são capazes de viabilizar a regularização das vazões. Devido
à sua capacidade de armazenamento (em períodos úmidos) e deplecionamento (em
períodos secos), elas atenuam a variabilidade das afluências naturais.
Deve-se considerar, também, que
esse mesmo efeito pode ser obtido com a construção de usinas “rio acima” – ou
“a montante”, conforme o jargão técnico. Hidrelétricas instaladas em um mesmo
curso hídrico podem atuar de forma integrada. Usinas localizadas “rio acima” –
a montante, no jargão técnico – podem usar seus reservatórios para regular o
fluxo de água utilizado pelas usinas localizadas “rio abaixo” – a jusante.
A usina binacional Itaipu, por
exemplo, por ser a última rio abaixo – a jusante, no jargão técnico – da Bacia
do Rio Paraná, é considerada como a fio d’água. Ocorre que se a gigantesca
hidrelétrica pode utilizar toda a água que chega ao reservatório, mantendo
apenas uma reserva mínima para garantir a operacionalidade, tal diferencial se
deve, direta ou indiretamente, à existência de dezenas de barragens a montante.
O conjunto formado pelos potenciais
hidráulicos da margem direita do rio Amazonas é considerado como uma rara e
poderosa combinação de queda e vazão nos estudos de inventário hidrológicos de
bacias brasileiras. A Volta Grande do Xingu, por exemplo, onde está sendo
construída a hidrelétrica Belo Monte, apresenta uma queda de cerca de 90 metros
entre dois pontos muito próximos de um rio cuja enorme vazão resulta de um
percurso de milhares de quilômetros, iniciado no Planalto Central.
Em geral, usinas a fio d’água têm
baixos “fatores de capacidade”. O fator de capacidade é uma grandeza
adimensional obtida pela divisão da energia efetivamente gerada ao longo do ano
– em geral, medida em MWh/ano – pela energia máxima que poderia ser gerada no
sistema.[1] Trata-se, portanto, de uma medida da limitação da usina no que diz
respeito à sua capacidade de gerar energia.
Na Europa, esse fator situa-se
entre 20% e 35%, em média, sendo um pouco maior na China e chegando a valores
próximos a 45% nos EUA[2]. Em média, as hidrelétricas brasileiras têm fator de
capacidade estimado em valores situados entre 50% e 55%. A regularização de
vazões por meio do uso de reservatórios faz com que essa média suba
significativamente, embora essa não seja, em muitos casos, a única responsável
por isso. No rio São Francisco, por exemplo, esse número para Sobradinho é 51%,
e para Xingó, mais a jusante, é 68%. No rio Madeira, a usina Jirau tem fator de
capacidade próximo de 58%, e o número para a usina Santo Antônio é de 68%. Não
por acaso, a vantagem relativa de Santo Antonio guarda forte correspondência
com o fato de ser um projeto situado a jusante de Jirau. Pelas razões já
apontadas, é possível compreender o magnífico número de 83% para Itaipu.
No caso de Belo Monte a potência
total instalada é de 11.233,1 MW e a geração anual média é de 4.571 MW, o que
resulta em um fator de capacidade pouco maior do que 40%. Esse tem sido um dos
pontos mais criticados pelos opositores ao empreendimento, que afirmam que a
usina irá “gerar pouca energia”. Mas os argumentos utilizados, em geral, não
levam em consideração dois pontos essenciais: os valores médios do fator de
capacidade das hidrelétricas brasileiras e a principal razão pela qual o
projeto de Belo Monte teve esse valor diminuído.
Ainda que se considerasse Belo
Monte como um projeto com fator de capacidade muito distante das médias das
usinas brasileiras, deve-se levar em conta que o mesmo não ocorreria ao se
compará-lo com aqueles situados na Amazônia e com as de outros países. Em Tucuruí,
por exemplo, no rio Tocantins – diga-se de passagem, dispondo da regularização
de usinas a montante –, esse valor é de aproximadamente 49%.
O reservatório projetado para
Belo Monte foi diminuído, bem como inviabilizada a capacidade de regularização
das vazões afluentes às suas barragens, em razão de argumentos de natureza
ambiental. Além disso, houve a decisão
de se elaborar um hidrograma denominado “de consenso”, com o objetivo de
garantir que, a jusante do barramento, fossem asseguradas boas condições de
pesca e de navegação às comunidades indígenas, entre outros aspectos.
Evidentemente, regularizar ou não
a vazão de um curso d’água é uma decisão que, necessariamente, deve incorporar
a dimensão ambiental – numa escolha entre alternativas que devem ficar
absolutamente claras para a sociedade. Entretanto, essa decisão vem sendo
tomada sem o necessário amadurecimento, sem uma discussão ampliada, baseada em
estudos objetivos dos benefícios e custos associados a tal escolha, com um
exagerado receio de desagradar a grupos de pressão específicos e visando a uma
boa imagem do governo na mídia.
Aliás, justamente nos diversos
meios de comunicação é possível encontrar os maiores disparates sobre o
assunto. Nas informações divulgadas nesses meios há boas doses de lirismo,
relacionado com a eventual substituição dos projetos de hidrelétricas,
nomeadamente aqueles que preveem grandes reservatórios, em benefício de outras
formas de transformação de energia – como as eólicas, por exemplo.
Informações de baixa qualidade
técnica, inclusive relacionadas à possibilidade de substituição de energia
hidrelétrica por eólica, encontram eco entre os mais diversos operadores do
direito e resulta em uma posição defensiva dos técnicos governamentais, tanto
da área de energia quanto da área ambiental. Alguns dos argumentos mais
utilizados nessa judicialização calcada na subjetividade são fundamentados no
chamado “Princípio da Precaução”, que pode ser definido como de natureza
filosófica, política, doutrinária, religiosa ou ideológica – mas, jamais como
de natureza científica.
O Princípio da Precaução é,
essencialmente, um preceito que, se aplicado ao pé da letra, inviabilizaria o
desenvolvimento, justificando a inação diante da ameaça de danos sérios ao
ambiente, mesmo sem que existam provas científicas que estabeleçam um nexo
causal entre uma atividade e os seus efeitos. Impõem-se, nesses casos, todas as
medidas necessárias para impedir tal ocorrência.
Pode-se dizer que há em tal
raciocínio uma quase paródia do pensamento de Leibniz, pois em vez de se supor
que nada acontece sem que haja uma causa ou razão determinante, a mera
suposição causal (de um dano ambiental, nesse caso) determina que nada deva
acontecer.
Como acreditar que seja possível
definir ameaça de danos sérios ao ambiente sem uma abordagem científica? Como
definir ameaça, danos e sérios sem recorrer à ciência? Lamentavelmente, muitos
atores políticos e operadores do direito crêem ser capazes de fazê-lo. No mundo
real, a adoção rigorosa do princípio da precaução implicaria fechar todos os
laboratórios científicos mundo afora. No Brasil, atualmente, sua aplicação faz
com que um empreendedor tenha que provar que as intervenções previstas não
trarão impactos, mitigáveis ou não, ao meio considerado, o que é virtualmente
impossível.
A militância radical, sustentada
no Princípio da Precaução, está se utilizando de um raciocínio de mão única. A
usina a fio d’água desperdiça a chance de se guardar energia da forma mais
barata e da única forma que permite múltiplas utilizações da água armazenada
como a criação de peixes, o turismo e a contenção de cheias, por exemplo.
Em um pensamento
predominantemente ideológico não há espaço para que sejam debatidas questões
fundamentais acerca da opção única por usinas “a fio d’água” ou com
reservatórios subdimensionados. Em primeiro lugar, deve-se considerar que o
desperdício de capacidade produtiva de energia a montante da usina a fio d´água
é praticamente irreversível. Em segundo lugar, a decisão por um caminho
praticamente sem volta foi tomada sem o devido e necessário debate técnico e
político acerca de um tema que afetará as próximas gerações. Não seria este o
caso de se utilizar o princípio da precaução, evitando-se tomar uma decisão
irreversível e de provável impacto ambiental negativo, visto que será
necessário, no futuro, recorrer a fontes mais poluentes de energia para
substituir a capacidade hidrelétrica desperdiçada?
No Brasil, a capacidade de
armazenamento de energia em reservatórios é intensamente beneficiada pela
diversidade de ciclos pluviométricos das bacias brasileiras, um diferencial
notável em relação a outros países. A otimização desses reservatórios passa
pelas linhas de transmissão, que, na prática, funcionam como vasos
comunicantes, transportando, em vez de água, energia de uma bacia hidrográfica
que esteja em um momento de abundância de água, para outra, onde haja
necessidade de se economizar água escassa. Desse modo, Belo Monte não pode ser
entendida como uma usina isolada e, sim, como virtuosa e hidricamente intercomunicada
– por ser interligada eletricamente – com o resto do País. Uma vez que o rio
Xingu tem suas cheias quase dois meses depois das cheias dos rios das regiões
Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste, a possibilidade de armazenamento em Belo
Monte diminuirá fortemente os riscos de carência de energia – no jargão
técnico, o risco de déficit.
Os estudos de um projeto
hidrelétrico incluem a análise do comportamento das estruturas, simulando a
passagem de uma vazão superior a cheia decamilenar, ou seja, uma cheia de tempo
de retorno de 10.000 anos. É tranquilizador saber que a margem de segurança de
uma barragem é tão significativa. Todavia, esse cálculo não guarda qualquer
relação com a segurança de vazões suficientes para fazer frente à influência da
economia sobre a demanda por energia. Nesse caso, utilizam-se os cenários
econômicos para estimar a demanda.
Como a matriz de geração elétrica
no Brasil há forte predominância hidrotérmica, os cenários começam a sinalizar
a crescente necessidade de uso de energia de fonte térmica, mais cara e mais
poluidora que a hidrelétrica.
E o pior: “ovos de Colombo”, como
a repotenciação e a modernização de hidrelétricas, ainda que totalmente
defensáveis, não são processos capazes de garantir o acréscimo anual de 3.300
MW médios de energia que o Ministério de Minas e Energia considera necessário
para fazer face às projeções de crescimento econômico para o Brasil. Difundir
informações de que a implantação desses processos evitaria, por exemplo, a
construção das usinas do rio Madeira não tem qualquer cabimento. O mesmo se
pode dizer quanto à possibilidade de eólicas serem capazes de evitar a
construção de novas hidrelétricas.
Concordemos, então: a energia
eólica é uma beleza, o Brasil deve investir cada vez mais nessa opção, há quem
ache lindos os cata-ventos e os zingamochos – embora haja dúvidas quanto à
reação da população de cidades que tenham que conviver próximas aos geradores,
enfrentando a poluição visual e a descaracterização urbanística. Entretanto,
essa não é uma opção para a base da matriz elétrica de qualquer país. Eólicas
não são feitas para a geração de base, pois exigem complementação por meio de
outras fontes, como hidrelétricas e termelétricas. Com fator de capacidade
menor do que a média das hidrelétricas brasileiras, as usinas eólicas dependem
fortemente dos ventos, pois essa opção tecnológica não permite armazenar a
energia produzida.
O crescimento do mercado
consumidor de energia combinado com a implantação de usinas sem reservatórios
diminui a confiabilidade do sistema, veda o aproveitamento múltiplo dos lagos
das hidrelétricas e obriga o Operador Nacional do Sistema (ONS) a fazer um
gerenciamento ano a ano dos estoques de água nas usinas. Como se sabe, sistemas
elétricos imunes a defeitos ou a desligamentos imprevistos são modelos
teóricos. Os 100% de confiabilidade no sistema elétrico ou “risco zero” de
falhas implicaria elevar os custos, que tenderiam ao infinito. E o consumidor
teria que pagar por isso, o que implicaria tarifas proibitivas. Assim, no mundo
todo, algum risco de falha no sistema é aceito. Mas a redução no nível de
confiabilidade do sistema interligado não é desprezível quando se reduz a capacidade
de armazenamento de um sistema predominantemente hidrotérmico como o
brasileiro.
Quem deveria decidir se a opção
pela construção de usinas a fio d’água é a melhor alternativa? Trata-se de um
risco para o sistema, um erro inclusive do ponto de vista socioambiental e uma
opção praticamente irreversível. Logo, constitui matéria a ser objeto de
discussão por ampla representação da sociedade, e não apenas por ativistas
ambientais, sociais, ideológicos ou do direito.
Parece que alguém se esqueceu do
art. 20, inciso VIII, da Constituição Federal, segundo o qual os potenciais
hídricos são bens da União e não de meia dúzia de agentes públicos assustados
com as ONGs, com a mídia e com os “achistas” de plantão. Se essa é uma
discussão a ser feita pela sociedade e como seria inviável – embora defensável
e desejável – a realização de um plebiscito acerca do tema, a democracia
representativa tem a única resposta legítima para esse desafio: o Congresso
Nacional.
Para saber mais sobre o tema:
Abbud, O. e Tancredi, M. Transformações Recentes na Matriz Brasileira
de Geração de Energia Elétrica: Causas e Impactos Principais. Texto para
Discussão nº 69. Núcleo de Estudos e Pesquisas do Senado, Senado Federal.
Disponível em
http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/TD69-OmarAbbud_MarcioTancredi.pdf
Montalvão, E. (2011).
Ambiente e energia: crença e ciência no licenciamento ambiental, parte I.
Núcleo de Estudos e Pesquisa do Senado Federal. Texto para Discussão nº 93.
Disponível emhttp://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/TD93-EdmundoMontalvao.pdf
Faria, I.D. (2011). Ambiente e energia: crença e ciência
no licenciamento ambiental, parte II. Núcleo de Estudos e Pesquisa do Senado
Federal. Texto para Discussão nº 94. Disponível em
http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/TD94-IvanDutraFaria.pdf
Faria, I.D. (2011). Ambiente e energia: crença e ciência
no licenciamento ambiental, parte III. Núcleo de Estudos e Pesquisa do Senado
Federal. Texto para Discussão nº 93. Disponível em
http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/TD99-IvanDutraFaria.pdf
Abbud, O. ; Faria, I.D. e
Montalvão, E. (2011). Ambiente e
energia: crença e ciência no licenciamento ambiental, parte IV. Núcleo de
Estudos e Pesquisa do Senado Federal. Texto para Discussão nº 107.
http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao/TD107-EdmundoMontalvao-IvanDutra-OmarAbbud.pdf.
Faria, I.D. (2011). Entrevista à TV Senado (2011). http://www.senado.gov.br/noticias/tv/videos/cod_midia_64264.flv
[1] Essa energia é calculada por
meio do produto Potência Nominal X 8760 h. Por sua vez, o número de horas
anuais é calculado pelo produto 24h X 365 dias, ou seja, 8760 h. Não se deve
confundir Fator de Capacidade com Fator de Carga, que é a razão entre a demanda
média de energia elétrica, durante um determinado intervalo de tempo, e a
demanda máxima registrada no mesmo período. Quanto maior esse índice, mais
adequado é o uso da eletricidade.
[2] Os valores médios de fatores de capacidade,
em geral, não são muito precisos em razão da dinâmica do processo de
implantação de novas usinas em cada país. Por exemplo, a entrada em operação ou
a ampliação de um empreendimento pode alterar esses valores. Desse modo, os
números aqui apresentados têm função apenas ilustrativa, visando a uma
comparação que, de resto, é pertinente, uma vez que as possíveis variações não
alteram substantivamente as possíveis conclusões
Por Ivan Dutra Faria